Fi-lo Canto de Sophia

Monday, June 30, 2014

A Nova e a Velha






Juntas elas simbolizam dois aspectos essenciais encontradas na psique de cada mulher.
Pois a alma de uma mulher é mais velha que o tempo, e seu espírito é eternamente jovem...sendo que a união desses dois compõe o "ser jovem enquanto velha e velha enquanto jovem".
Não importa o número de anos que você tenha vivido, alguma vez já se sentiu como se ainda estivesse com 16 anos? É seu espírito. O espírito é eternamente jovem e, embora cresça em experiência  e sabedoria, ele possui a exuberância, a curiosidade e a criatividade desenfreada da juventude.
Você alguma vez sentiu que disse ou fez algo muito mais sábio, mais inteligente do que você realmente aparenta ser na vida diária? Essa é uma prova da existência da alma, a força antiga no interior da psique que "sabe" e age de acordo.
Numa psique equilibrada, essas duas forças, o espírito jovem e a alma velha e sábia, se mantêm num abraço em que mutuamente se reforçam. A psique foi construída para ter seu melhor funcionamento, enfrentando dragões, fugindo de torres, dando de carra com o monstro, rompendo encantamentos, encontrando o brilho, lembrando-se da própria identidade... quando é guiada por essa dupla dinâmica.
E o que deveria fazer uma mulher que perdeu o contato com um ou com o outro aspecto dessa preciosa natureza dentro de si mesma, seja o espírito para sempre jovem, seja a anciã conselheira... aqueles aspectos exatos que tornam uma mulher uma "grande" neta, uma "grande" avó, uma "grande" alma?
Receber "a bênção" para viver de verdade... Às vezes passamos toda a nossa vida à espera da "bênção", daquela que abra totalmente os portões: "Ande, sim, viva como um ser pleno o tempo todo, até seus limites mais distantes."
Uma bênção não faz com que você ganhe alguma coisa, mas, na verdade, faz com que você use alguma coisa - algo que você ja possui -, o dom que nasceu junto com você no dia em que você chegou à Terra. Uma bênção é para que você se lembre totalmente de quem é, e faça bom uso da magnitude que nasceu embutida no seu eu precioso e indomável.
(...)
Saiba que você é abençoada, apesar das hesitações, quedas, tempo perdido, certezas, perspicácias  e mistificações, pois tudo isso é combustível para avançar ...
...Portanto que sempre consigamos resistir a quaisquer falsidades coletivas que procurem anular a visão e a audição da alma. Assim, a mulher sábia espia do meio do bosque cerrado.
Que nos afastemos dos zombeteiros que não ouvem esse chamado para a vida da alma. Assim, a mulher sábia avança por seu caminho.
Se necessário for, que nos transformemos em alegres e subversivas que estão em constante crescimento, e têm um coração luminoso e calmo. Assim, chega o espírito à superfície do lago.
Que nos recusemos a ser jogadas para cair em um lugar qualquer, mas, em vez disso, vamos planejar e cumprir nossas fugas do que é morbidamente banal, bem como do que é cronicamente vazio ou brutal. Assim, o espírito se ergue em pleno esplendor.
(...)
...Que você sempre se lembre de estar conectada à alma, se for visão e força que deseja,
...e de estar conectada ao espírito, se for energia e determinação que necessitar para agir pelo seu próprio bem e pelo mundo,
...e, se for sabedoria o que quiser, que você sempre una o espírito à alma, ou seja, una a ação à paixão, a ousadia à sabedoria, a energia à profundidade... e convide todos os aspectos da psique para o hierosgamos, esse matrimônio sagrado.
Anime-se e inspire-se.
Escolha o que tornar maior, não menor, o seu coraão, sua mente e sua vida.
Escolha o que a faça dançar, não mais andar pesadamente nem cochilar, pelo tempo afora.
A alma e o espírito têm instintos excelentes. Trate de usa-los.
A alma e o espírito têm admiráveis dons do coração. Trate de desdobrá-los.
A alma e o espírito tem a capacidade  de ver longe, remar muito e se curar razioavelmente bem.
Trate de usá-la.
Desde sempre esteve esperando por você na sua floresta interior, uma mulher, a maior das maiores, sentada \à beira da maior das maiores fogueiras. Apesar de você atravessar a escuridão esmagadora para criar diamantes, ou o deserto que a priva de tudo mas que a sustenta com sua água oculta, apesar de ter de se desviar ao chegar ao rio para ser transportada por sobre as corredeiras por mãos invisíveis... apesar de toda e qualquer luta...aquela mulher, a maior das maiores, em pleno espírito, está a sua espera, enviando pacientemente mensagens pelo sistema de raízes da sua psique de todos os modos possíveis. Este é o trabalho dela, o maior dos maiores. E o maior dos maiores trabalhos que cabem a você é enconrá-la e mantê-la para sempre.
Há quem diga que bênçãos são apenas palavras.
Mas, minha filha, tendo em vista sua esperança, sua capacidade para amar, seu anseio pela alma e pelo espírito, sua carga criativa, seu interesse e fascínio por viver a vida plenamente, essa bênção para você não é só "palavras". Digo-lhe que esta bênção é profecia.





         "Quando uma pessoa vive de verdade, todos os outros também vivem."

(A Ciranda das Mulheres Sábias - Clarissa Pinkola Estés )

Wednesday, March 18, 2009

Inesperada, encarei-o pedindo.

Acho que Caio Fernando me entende, certamente me entende !!

Inesperada, encarou-o pedindo. Dentro do ônibus que corria para um destino com a segurança dos que sabem para onde vão, ela de repente se assumiu em fêmea e simplesmente pediu. Seu primeiro movimento veio marcado de espanto, pois que pedia pura, motivada apenas pelo desejo de receber. Depois adentrou em si, recusando, negando a solicitação no Ônibus superlotado de fim de tarde -e, no entanto ainda pedia, mas dissimulada, tomando-se pouco apouco cínica na maneira esquiva de olhar.

Espiou pela janela, curvando-se um pouco, quase a tocá-lo. A natureza de fora do ônibus escorria cinzenta, meio amorfa, desfeita em tons que não chegavam a se afirmar em cores. Dentro, escorria também, sem conseguir a nitidez de qualquer palavra. Subira no ônibus tão despreparada, disse baixinho, procurando encontrar a exclamação que não existia. E súbito, o homem estava ali. De óculos, entradas fundas no cabelo, olhando perdido pela janela. Era bonito? Sacudiu a cabeça em negativa de indecisão, como explicar, como formular que ele apenas era, sem adjetivos, era, estava sendo, embora sem saber, sem esforço algum -era. E ela pedia. Quebrava-se toda por dentro num movimento entre pudor e medo, voltando a cabeça para espiá-lo a seu lado, as mãos postas em repouso sobre as calças beges claro. Ah como doía solicitar tanto e ir-se tornando cada vez mais lúcida dessa solicitação.

Tentou voltar ao primeiro susto, mas percebeu que este jamais se bastaria em si. Era o desassustado começo do medo e o resto se faria caminhada lenta de olhar para trás, para os lados, a ver se não estava sendo vigiada. Impossível, pois, voltar ao impacto primeiro, que era um nada de exigência não-doída porque desconhecia a si mesma. A compreensão que atingindo, doía. Nesse doer, ela começava a soer, imprecisa e vaga. Suspirou ajeitando os cabelos que prendera na nuca, preguiçosa de pentear-se porque não previra o encontro.

Impassível, o homem ao lado. E já não mais era capaz de defini-lo: ele se transformara no que ela sentia. Ia além dessa compreensão, percebendo sábia que o seu sentir era tão dentro -e vago como as coisas interiores -que ela não poderia jamais o saber o em lucidez completa. Conseguia adivinhar o externo, nas o interno se perdia indefinido em sombras. O ônibus escorria no asfalto, o tempo escorria no relógio. Tudo ia em frente, ela se comprimindo cada vez com mais ardor. Ultrapassara o susto mas, temerosa de sofrer por amor, caíra na paixão. Absurda e mexicana e encerrada em si e independente do que a despertara: paixão. Pelo homem que era o objeto mais à não, com a mesma intensidade com que amaria o único coqueiro da ilha onde estivesse náufraga.

De repente, se alguém a olhasse, ela perturbaria com sua turgidez ampla de fêmea em ritual de amor. Os olhos se haviam agradado, a boca fremia num aparente mistério, porque jamais alguém conseguiria compreendê-la ou aceita-la em sua quase obscenidade. Ela avançara rápido demais, e agora já não cabia dentro de si. Perdera-se completamente, os lábios mordidos e o frio do suor nas palmas das mãos a complicavam ainda mais. Irritava-se com as pequenas coisas que tentavam afastá-la de sua danação –a peruca loira da mulher em frente, os solavancos do ônibus, o vento que entrava pela janela aberta. Então quase odiava o que não contribuía para o amor desesperado gritando dentro dela.

Foi aí que o ônibus parou e ela desceu. Não sabia se antes ou depois ou no lugar exato onde devia. Não sabia ainda se fugira ou se aceitara. Um carro passou, molhando-a da água da chuva que caíra à tarde. Era noite. Assoou o nariz. Esbarravam nela, o choque fazendo-a enrijecer-se numa tentativa de decifração. O ônibus ia longe, dobrando a esquina, a silhueta do homem confundida com as outras, não conseguia mais ligar os pensamentos, recordar em que caíra, e como caíra, e porque caíra. Enveredou lenta pela galeria, alcançou a escada rolante. Foi no meio da subida, o espelho refletindo seu rosto, que ela descobriu um ponto branco latejando vivo num lugar desconhecido. Preciso cortar os cabelos, pensou sem compreender. Ou sem querer compreender. Ou sem querer, apenas.
(Caio Fernando Abreu)

Saturday, February 07, 2009

Viajando ...


Engraçado ... isso ja estava claro pra mim , estou aqui em movimento, caminhando ... eu falava isso inclusive quando me chamavam de estrangeira em Caxias do Sul ... claro que sou estrangeira aqui e em qualquer outro lugar . No entanto, a minha história com " mein lieber" acabou me acomodando de um jeito estranho ... é como se eu quizesse que isso fosse um "fim", e que sem graça seria se realmente assim o fosse, não?

Enquanto eu ruminava , de coração apertado, o fim dessa história, me veio a carta de Osho , " viajando" .
Poxa, meu Deus , como tu és bom comigo!!
É claro que " mein Lieber " foi uma companhia agradável num bom trecho da caminhada , mas , a caminhada continua , graças ao bom Pai!!

A vida é uma continuidade, sempre e sempre. Não existe um destino final ao qual ela esteja se dirigindo. Apenas a peregrinação, apenas a viagem em si já é a vida, não o chegar a algum ponto, a alguma meta -- apenas dançar e estar em peregrinação, movendo-se alegremente sem se preocupar com nenhum ponto de chegada.
O que você fará depois que chegar a um destino? Ninguém nunca fez esta pergunta porque todo mundo está empenhado em ter alguma meta na vida. Porém, as implicações disso...
Se você atingir de fato o destino final da vida, o que vem depois? Você irá parecer muito desapontado! Não haverá lugar aonde ir... você já alcançou o ponto de destino... -- e ao longo da viagem deixou escapar tudo. Era preciso deixar passar! Então, nu e plantado no ponto de chegada, você ficará olhando em volta como um idiota: qual era mesmo o propósito disso tudo...? Você esteve se apressando tanto, preocupando-se tanto, e este é o resultado final.

Osho Rinzai: Master of the Irrational Chapter 7


Comentário:

A pequenina figura que se desloca pela trilha que corta esta bela paisagem, não está preocupada em chegar a qualquer destino. Ele, ou ela, sabe que a viagem é a própria meta, que a peregrinação em si é o santuário. Cada passo no caminho é importante por si mesmo.
Quando esta carta aparece numa leitura, indica um tempo de movimento e mudança. Pode ser um deslocamento físico de um lugar para o próximo, ou um movimento interior de uma maneira de ser para outra. Qualquer que seja o caso, porém, esta carta assegura que a mudança será fácil, e que trará um sentimento de aventura e de crescimento; não há nenhuma necessidade de se esforçar nem de planejar em demasia. Esta carta da "Viagem" também nos lembra de que devemos aceitar e acolher o novo, exatamente como acontece quando viajamos para um outro país, com uma cultura e um ambiente diferentes daqueles a que estamos acostumados. Esta atitude de abertura e de aceitação estimula o surgimento de novos amigos e de novas experiências na nossa vida.



Copyright © 2009 Osho International Foundation

E lá vou eu , adiante ..., lembrando o que Paulinha sempre diz : caiu ? levanta, sacode a poeira , e bola pra frente !! ( e ela diz que foi mamãe quem ensinou, rs )

As vezes uma expectativa nos paralisa, nos engessa, nos torna míopes.
Mas, não deve ser assim.
Vambora !! Porque a vida continuamente nos apresenta novos desafios.
Enquanto vamos cumprindo nossas etapas e vencendo aprendizados , continuamos sempre nos deparando com coisas novas.
Que bom que é assim !!

Friday, January 23, 2009

Eu tenho um dragão ... tive , não sei ... acho que tenho, mas ele fugiu . Ainda tenho queimaduras por te-lo enfurecido ....

Relendo o texto "Os dragões não conhecem o paraíso"de Caio Fernando Abreu consegui me enxergar melhor ... vejo hoje que eu tive um dragão em minha casa e .. só consegui percebe-lo depois que partiu . O silencio e o vazio após sua saída me fizeram notar a proporção da sua presença. estranho isso , né ? Pois é , foi justo como Caio Fernando também se sentiu. E ele diz : "Quando penso desse jeito , enumero proposições como : a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo."
Assim estou eu, aqui . ja nem sei se posso ainda sonhar , mas quero continuar ...

E me vem a história do dragão de Caio Fernando :

Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo.

Mas preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história. Principalmente se for uma história de dragões.

Gosto de dizer tenho um dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu dizia, um dragão jamais pertence a, nem mora com alguém. Seja uma pessoa banal igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo, hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um dragão sabe ser gentil e submisso como uma gueixa. Apenas, eles não dividem seus hábitos.

Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer horário, às três ou às onze da noite, já que o dia e a noite deles acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três vezes, como se tivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira desajeitada de dizer, como costumo dizer agora, ao despertar - que seja doce.

Mas no tempo em que vivia comigo, eu tentava - digamos - adaptá-lo às circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender, querido, os vizinho banais do andar de baixo já reclamaram da sua cauda batendo no chão ontem às quatro da madrugada. O bebê acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além disso, quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo seu fogo. E, quanto você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira cinzas na minha cabeceira.

Ele não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso parece ridículo. Um dragão nunca acha que está errado. Na verdade, jamais está. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, na tarde ou na noite seguintes, quanto ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e Kafka, Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais esturricados. Até que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre as cinzas. Cinzas são como sedas para um dragão, nunca para um humano, porque a nós lembra destruição e morte, não prazer. Eles trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.

Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe. Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento, tão delicado de contar - você ainda tem paciência? Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu tinha tanta certeza da existência dele, se afirmo que não o via. Caso você dissesse isso, ele riria. Se, como os homens e as hienas, os dragões tivessem o dom ambíguo do riso. Você o acharia talvez irônico, mas ele estaria impassível quanto perguntasse assim: mas então você só acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante: "Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível".

Ele gostava tanto dessas palavras que começam com in - invisível, inviolável, incompreensível -, que querem dizer o contrário do que deveriam. Ele próprio era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal ponto que, quando o percebia intratável, para usar uma palavra que ele gostaria, suspeitava-o ao contrário: molhado de carinho. Pensava às vezes em tratá-lo dessa forma, pelo avesso, para que fôssemos mais felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde demais para tentar requintadas harmonias.

Ele cheirava a hortelã e alecrim. Eu acreditava na sua existência por esse cheiro verde de ervas esmagadas dentro das duas palmas das mãos. Havia outros sinais, outros augúrios. Mas quero me deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar. Não acredite se alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou a cachorros das ruas depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe morto e maresia - nunca foi esse o cheiro dos dragões.

A hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o apartamento inteiro ficava impregnado desse perfume. Até os vizinhos, aqueles do andar de baixo, perguntavam se eu andava usando incenso ou defumação. Bem, a mulher perguntava. Ela tinha uns olhos azuis inocentes. O marido não dizia nada, sequer me cumprimentava. Acho que pensava que era uma dessas ervas de índio que as pessoas costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música muito alto. A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse cheiro começava a descer pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que o bebê sorria, parecendo sonhar. Sem dizer nada, eu sabia que o bebê sonhava com dragões, unicórnios ou salamandras, esse era um jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais largo. Mas os bebês costumam esquecer dessas coisas quanto deixam de ser bebês, embora possuam a estranha facilidade de ver dragões - coisa que só os mundos muito largos conseguem.

Eu aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu lado. Certa vez, descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de olhos-azuis-inocentes e seu bebê, que também tinha olhos-azuis-inocentes. O bebê olhou o tempo todo para onde estava o dragão. Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração vagamente púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê, e eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de barba no terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo elevador numa tarde que lembro de abril - esse é o mês dos dragões - dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões, mas só às vezes, sabem transmitir.

Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato dessa palavra seca - amor. Se não o tempo todo, pelo menos quanto lembro de momentos assim. Infelizmente, raros. A aspereza e avesso parecem ser mais constantes na natureza dos dragões do que a leveza e o direito. Mas queria falar de antes do cheiro. Havia outros sinais, já disse. Vagos, todos eles.

Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber porque, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher o apartamento de rosas e palmas e morangos daqueles bem gordos e cachos de uvas reluzentes e berinjelas luzidias (os dragões, descobri depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não conseguia comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas, para que os espaços ficassem mais bonito.

Como uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer. Sentava na sala toda arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas, cestas de frutas, vasos de flores - acendia um cigarro e ficava mastigando com os olhos a beleza das coisas limpas, ordenadas, sem conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À medida que a casa ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais magro, olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem comer, à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todo numa certeza histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã, começasse a ficar mais forte, para então, um dia, escorregar que nem brisa por baixo da porta e se instalar devagarzinho no corredor de entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama. Ele tinha chegado.

Esses ritmos, só descobri aos poucos. Mesmo o cheiro de hortelã e alecrim, descobri que era exatamente esse quando encontrei certas ervas numa barraca de feira. Meu coração disparou, imaginei que ele estivesse por perto. Fui seguindo o cheiro, até me curvar sobre o tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes, a hortelã de folhinhas miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que pareciam espinhos, mas não feriam. Pergunte o nome, o homem disse, eu não esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quanto sentia saudade: alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim.

Antes, antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia unicamente ansiedade, taquicardias, aflição, unhas roídas. Não era bom. Eu não conseguia trabalhar, ira ao cinema, ler ou afundar em qualquer outra dessas ocupações banais que as pessoas como eu têm quando vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a casa, e em ficar bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu enfeiava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava, eu nunca tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiúra. Menos ainda a daqueles que honram com sua rara visita.

Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora. E forçava os olhos pelos cantos de prata esverdeadas, luz fugidia, a ponta em seta de sua cauda pela fresta de alguma porta ou fumaça de suas narinas, sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias, enlouquecia cada vez mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo minha ânsia, ele tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se, fingia partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no esforço de percebê-lo, dias após dia, enquanto flores e frutas apodreciam nos vasos, nos cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas esvoaçavam em volta delas, agourentas.

Tudo apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do impossível que era tê-lo. Atento somente à minha dor, que apodrecia também, cheirava mal. Então algum dos vizinhos batia à porta para saber se eu tinha morrido e sim, eu queria dizer, estou apodrecendo lentamente, cheirando mal como as pessoas banais ou não cheiram quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega nunca. Ele não compreenderia. Eu não compreendia, naqueles dias - você compreende?

Os dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando aquele cheiro de frutas e flores e, pior que tudo, de emoções apodrecidas tornava-se insuportável. Igual e confundido ao cheiro da minha felicidade que, desta e mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo ou acordado, eu recebia sua partida como um súbito soco no peito. Então olhava para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios que fossem. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repente tão vazias sem ele.

Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pântano de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.

Hoje, acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo cresça? Pergunto - porque não estou certo - coisas talvez um tanto primárias, como: um dragão vem e parte para que você aprenda a dor de não tê-lo, depois de ter alimentado a ilusão de possuí-lo? E para, quem sabe, que os humanos aprendam a forma de retê-lo, se ele um dia voltar?

Não, não é assim. Isso não é verdade.

Os dragões não permanecem. Os dragões são apenas a anunciação de si próprios. Eles se ensaiam eternamente, jamais estréiam. As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena. Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem. O aplauso seria insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é compreendida e aceita e admirada, e portanto - pelo avesso igual ao direito - incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos - como eu inventava uma beleza de artifícios para esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim. Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.

Quando volto apensar nele, nestas noites em que dei para me debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginá-lo voando com suas grandes asas douradas, solto no espaço, em direção a todos os lugares que é lugar nenhum. Essa é sua natureza mais sutil, avessa às prisões paradisíacas que idiotamente eu preparava com armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele vinha. Paraísos artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo - tão banal e sedento - a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe soar ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas aflições de ser feliz.

As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem sentir.

... é assim que me sinto : quase sem sentir .

Wednesday, January 07, 2009

Coragem ... é o que a vida quer da gente .


Nos ultimos dias tenho feito repetidos links com fatos que aconteceram em 2006 ... nem vou detalhar estes fatos , primeiro por considera-los super pessoais , mas principalmente por isso ser irrelevante na minha reflexão aqui .
Essa ponte entre as lembranças de 2006 e o ano 2009, recém iniciado , me levou a viagens interessantes , e, assim, resolvi fuçar meu baú, a procura deste meu espaço querido, deste meu canto de Sophia .

Amadureci , eu sei, e isso me basta para aceitar que estes ultimos três anos passaram quase que despercebidos por mim, mas , mesmo assim , foram talvez os mais importantes da minha vida .

Que venha 2009 . Marianne, Presente !!

" O Correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim:
esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem."
( Guimarães Rosa)

Saturday, October 21, 2006

É o Mundo Plano ?


Nossa
Piração total o livro de Thomas L Friedman.
Acredito que nos próximos dias escreverei muito sobre isso, pq a leitura do livro realmente esta me tomando de corpo e alma .
O que Colombo nos diria de tudo isso hoje ?
Friedman fala da globalização 3.0. No início houve a globalização dos países, depois a das empresas e agora é a recém-descoberta capacidade dos indivíduos de colaborarem e concorrerem no âmbito mundial. Somos hoje todos vizinhos de porta , graças aos inumeros aplicativos de softwares conjugados à criação de uma rede de fibra óptica em escala planetária .
Aplainamos a terra !
Legal , estamos interligando todos os centros de conhecimento do planeta e costurando uma única rede global, isso pode inclusive nos ajudar a salvar o planeta . Sera ??
Comungo com Friedman o receio das consequencias negativas deste aplainamento de terreno , pois certamente não irá só agregar e expandir as boas oportunidades .
A pergunta que me faço hoje é
Como eu me insiro neste contexto global ?
Como posso colaborar com outras pessoas , em âmbito global , evitando que este brinquedo caia nas mãos daqueles que estão acabando com nosso planeta ?

Vitor Hugo profetizou que no século XX as guerras acabariam, as fronteiras desapareceriam, o dogma morreria - e o homem viveria . "Ele posuirá algo superior a estas coisas - um grande país , a Terra Una ...e uma grande esperança, todo o céu".
Onde esta nossa Terra Una ?
Como podemos alcança-la ?
Oremos e lutemos : "Venha o Teu Reino"

"Neste momento terno e pensativo
Aqui sentado a sós
Sinto que existem noutras terras outros homens
Ternos e pensativos,
Sinto que posso dar uma espiada
Por cima e avistá-los
Na França, Espanha, Itália e Alemanha
Ou mais longe ainda
No Japão, China ou Rússia,
Falando outros dialetos,
E sinto que se me fosse possível
Conhecer esses homens
Eu poderia bem ligar-me a eles
Como acontece com homens de minha terra,
Ah e sei que poderíamos
Ser irmãos ou amantes
E que com eles eu estaria feliz."
(WALT WHITMAN)

Sunday, October 15, 2006

Conspiremos !!

Eu sou aquele que vai com a noite
tenra e crescente,
e invoco a terra e o mar
que a noite leva pela metade.
Aperte mais, noite de peito nu!
Aperte mais, noite nutriz magnética!
Noite dos ventos do sul,
noite das poucas estrelas grandes!
Noite silenciosa que me acena
– alucinada noite nua de verão!

Sorria, ó terra cheia de volúpia,
de hálito frio!
Terra das árvores líquidas e dormentes!
Terra em que o sol se põe longe,
terra dos montes cobertos de névoa!
Terra do vítreo gotejar da lua
cheia apenas tinta de azul!
Terra do brilho e sombrio encontro
nas enchentes do rio!
Terra do cinza límpido das nuvens,
por meu gosto mais claras e brilhantes!
Terra que faz a curva bem distante,
rica terra de macieiras em flor!

Sorria: o seu amante vem chegando!
Pródiga, amor você tem dado a mim:
o que eu dou a você, por tanto, é amor
– indizível e apaixonado amor!
Walt Whitman


Uma vez .. ja faz mais de um ano , encontrei no meu caminho uma figura singular , e pra esta pessoa finalmente consegui falar o que eu sentia mas que parecia tão fora do normal .

Eu disse :
"sabe essas coisas que acontecem na vida da gente e .. a unica reação que conseguimos ter é agradecer ... tô bem assim ...
a dias , não, a meses as coisas estão " acontecendo" ... e se encaixando ... uma surpresa atrás da outra ... é minha busca por minha origem , origem esta que eu desconhecia , mas a cada dia reconheço mais pela sensação de familiaridade .. meio assim : é bom estar chegando em casa , rs
e... o contato com vc , hoje , eu sei, tbem faz parte desta minha metamorfose ... consegue imaginar minha emoção ? "

E ali tudo começou !!
Esta pessoinha maravilhosa , meu querido e velho companheiro de viagem , Mario Sérgio que me mostrou que eu não estava só , e que eu estava na verdade só começando a mais fantástica experiencia que qualquer ser humano pode ter : a VIDA !!!
Eu estou consciente de estar participando de uma fantastica conspiração.

"Jung dizia que o mundo não vive sem um mito orientador .
Os antigos mitos , desconfigurados em sua sabedoria , só vem gerando mais conflitos .
É necessário um novo mito para a sociedade .
Joseph Campbell buscou encontrar qual seria o novo mito orientador para nossa época .
Em dezembro de 1968, ao se deparar com a foto da Terra tirada da Lua pelos astronautas da nave Apolo 8, teve um insight, e compreendeu de imediato que a ciência com sua tecnologia mais avançada estava nos mostrando, sem palavras, que esse mito é o despertar para a consciência de que a Terra é a nosa casa, e que se precisamos urgentemente preservar toda a vida que nela existe , e cuidar com compaixão de todas as pessoas e da natureza , sem preconceitos , sem fronteiras, sem qualquer discriminação." ( Ciência , Espiritualidade e Cura , Fco di Biase e Mario Sérgio F da Rocha )

E é isso , pra isso estamos aqui .